PÚBLICO, 28 de Setembro de 2001


Com Os Refugiados Afegãos Num Deserto Paquistanês


Terra seca, pedras, pó. Ao meio-dia faz tanto calor que é difícil respirar. É um deserto. Aqui vivem 12 mil afegãos, e a maioria são crianças. Todos viram matar ou morrer. Famílias de seis, oito, dez pessoas mantêm-se com pouco mais de um euro por dia. São as que não passam fome. Quatrocentas crianças têm aulas em cubículos de terra batida. São as que não andam nuas, com barrigas inchadas. Há quem tenha chegado há 15 anos. Há quem tenha acabado de chegar. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, em Peshawar

Acima do deserto

Vamos de ambulância. Uma ambulância velha, sem sirene.

O governo paquistanês interditou o acesso dos jornalistas aos campos de refugiados afegãos, cerca de cem só à volta de Peshawar. Mas a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA) - uma rede anti-fundamentalista, que trabalha sobretudo dentro do Afeganistão, mas também com os refugiados nos campos) - ajudou-nos a entrar num dos campos onde criou escolas, apoio médico e laboral. A velha ambulância é um estratagema, para contornar as autoridades paquistanesas.

Saímos de Peshawar rumo a leste, como quem vai a caminho de Islamabad. Andamos uns vinte quilómetros, até encontrarmos um enorme mercado à beira da estrada. Viramos à direita, entre camiões e camionetas a abarrotar de gente. A estrada torna-se esburacada. Vemos gente a andar a pé, ao sol, com grandes sacos às costas e alguns velhos de bicicleta, à margem do tráfego, intenso.

Voltamos a encontrar um mercado ao ar livre, no meio do campo. Avançamos entre cabras, ovelhas, e vacas escanzeladas. Agora a estrada é de terra batida. Com as janelas do carro abertas, é impossível respirar. Quando o mercado acaba, é o deserto. Uma planície de pó e pedras, com um trilho para os carros.

Ao fundo, vemos uma muralha da cor da terra. E depois começamos a avistar o labirinto de ruas escavadas entre muralhas da mesma cor. Confunde-se com a paisagem, é uma aldeia roubada ao deserto, um relevo que os homens ergueram e cobriram com o chão que pisam.

A ambulância ondula por ali fora, desce, volta a subir uma colina, pára numa espécie de praça com árvores. Pó e galinhas, pó e cabras, pó e crianças pequeninas a correrem ao longe.

Aqui, acima do deserto, com água duas vezes por dia, vivem 12 mil afegãos.

De volta à escola

A nossa anfitriã chama-se Zoya, tem 21 anos. Atravessamos a praça a caminho de um dos cursos de literacia que a RAWA apoia. Funciona na escola: um pátio (de terra, já se sabe) com vários cubículos a toda a volta. As paredes estão desfeitas, as carteiras estão partidas. Mas em cada sala há um quadro, giz, uma professora e entre dez e vinte alunas. O essencial.

De manhã - como veremos - estas salas, e mais cinco ou seis, estão cheias de crianças, da 1ª à 10ª classe. Quem agora encontramos são mulheres, a partir do 21 anos, solteiras, casadas, viúvas, a aprender farsi (ou mais correctamente dari, a variante do persa falada no Afeganistão) e matemática.

No fim das aulas, conversamos. Em grupo. Contam de onde vêm: de Jelalabad, de Mazar-i-Sharif, de Chamali, de Cabul, de Farah, ou seja um pouco de todo o Afeganistão.

Uma das mais antigas vive aqui há 14 anos. Fugiu da invasão soviética, caminhando quatro dias e quatro noites pelas montanhas, até chegar à fronteira de Torkham, perto de Peshawar: "Quando viemos, só havia lagartos, era o deserto. Íamos buscar água muito longe. Agora há casas, aulas, sinais de vida. Temos algumas lojas pequenas, algumas pessoas cultivam legumes."

Contrapõe outra, mais velha: "Mas se o nosso país for livre o que faremos no Paquistão? É claro que queremos voltar. No Verão, faz 50 graus, aqui. Só temos água duas vezes por dia, temos que fazer fogueiras para cozinhar, há muito pó, estamos sempre a limpar as casas. E há o problema dos transportes." A 45 quilómetros de Peshawar, no meio do nada, raramente alguém do campo se pode dar ao luxo de pagar para ir num transporte colectivo.

Os maridos (e muitos dos filhos e filhas) trabalham na fábrica de tijolos que há fora do campo, uma autêntica plataforma de assar, sem sombras. Ganham pouco mais de um euro por dia.

A elas, ninguém dá trabalho. Algumas, fazem tapetes em casa, que os maridos venderão por uma ninharia a alguém que os venderá por uma fortuna. Visitaremos algumas.

Agora a tarde vai ficando fresca, e enche-se de pássaros a cantar, por cima das árvores.

O que as faria voltar ao Afeganistão?, perguntamos ainda.

"O fim dos taliban e da Aliança do Norte", diz uma.

"O rei Zahir Shah", acrescenta a mulher mais velha, "eu tinha oito anos no tempo do rei. O meu pai ia ao trabalho, a minha mãe saia à rua. Não havia véu, não tínhamos medo de morrer a todo o momento. Os taliban insultaram o meu marido, obrigaram-no a usar barba, não me deixavam ir visitar os meus parentes. Uma vez, eu não estava a conseguir respirar bem debaixo da 'burqa', e destapei-me um pouco. Deram-me uma chicotada em frente a toda a gente."

Lusco-fusco. Recorta-se meia lua no céu. Quarto crescente. É hora das mulheres irem preparar o jantar. Arroz, pão da véspera, chá verde.

Nós vamos, entre galinhas e cabras, a caminho de outro portão, para outro pátio.

Chams e as raparigas

Uma coisa pequenina, a sorrir, vem na direcção dos nossos joelhos e estende a mão para cima, a cumprimentar: "Salam!" Olhos em bico, cabelo espetado. "Eu sou o Chams", diz ele em inglês. "Tenho seis anos." É o homem da casa. À sua volta há 17 raparigas, tão diferentes entre si como partes da terra, da Sicília à Mongólia, do Tajiquistão à Índia. Afegãs, com o sangue de muitos sangues que só um país cercado por outros seis, e encravado na Ásia Central, podia ter, tantas rotas da seda depois.

São as 17 "irmãs" de Chams. Todas viram o pai ou a mãe ou um irmão ou um tio morrer. Muitas fugiram para não serem violadas. Estão juntas por serem orfãs. Quando se espalham pela sala, numa cascata de lenços e tecidos, deixamos de ver o homem da casa. Até que ele emerge, minúsculo, ao lado da pequena Chafira, de sete anos, tão bonita e delicada quanto ele.

É a sua única irmã de sangue. Ele sabe que gosta mais dela do que das outras, mas não sabe porquê. Não sabe bem o que são pais. Não sabe que antes da destruição dos famosos budas, o pai foi morto pelos taliban em Bamyan (centro do Afeganistão), que a mãe voltou a casar com outro homem, que então o irmão mais velho pegou nele e em Chafira e os trouxe para este campo de refugiados. Como Chams era pequenino, pôde ficar no orfanato das raparigas.

Agora tem seis anos, é sempre o primeiro da classe e está a tentar falar inglês connosco. "One, two, three...". O pouco que aprendeu a espreitar as aulas dos mais velhos. A seguir vai beber chá e depois jantar.

Como todos os refugiados afegãos, Chams tem uma história terrível. Mas está a salvo de "rockets" e massacres, vai à escola, come. Não tem o ventre inchado e a cabeça desproporcionadamente grande de alguns meninos deste campo que o PÚBLICO encontrará, nus, no meio do pó.

Meninos que estão a morrer de fome, meninos que são dados pelas mães, para não morrerem de fome, meninos que nem chegam a viver: em cada cinco partos, morre um bebé.

O dia a dia de Chams é como o das raparigas. A única excepção é que não lava a sua própria roupa: acordam às seis da manhã, fazem ginástica no pátio, tomam o pequeno-almoço, estão na escola das 8h às 12h, dormem, fazem trabalhos de casa, cozinham (cada dia, uma equipa de um grande e um pequeno). À noite preparam farinha com água para as mulheres lhes cozerem o pão nos fornos de terra que há na maior parte dos pátios. O único dia em que não têm aulas é à sexta-feira, dia santo para o Islão.

Vem chá, bolachas. Elas começam a falar do que se lembram do Afeganistão. Bassira, 17 anos, está calada, de cócoras, cabeça baixa. É a única que tem um lenço preto espesso sobre o cabelo. Parece uma velhinha. Tem marcas em torno da boca e dos olhos. Ouve uma outra contar que leu num livro como o Afeganistão era belo e tinha montanhas e cascatas. E então começa a falar:

"Eu lembro-me das cascatas, e da natureza. Mas quando me lembro dos gritos, dos homens que foram mortos em frente das mulheres, em fila, odeio o Afeganistão." A voz abafa, começa a chorar, volta a baixar a cabeça.

A nossa intermediária explica-nos baixinho (embora ninguém nos possa compreender) que Bassira assistiu ao massacre de Hazarat (Bamyan), em 1998, quando os taliban mataram os homens de várias aldeias, à frente das mulheres e crianças. O irmão dela tinha 27 anos.

Bebemos chá em silêncio. Agora ninguém fala.

"Salam!" Uma mulher vestida de vermelho, cabelo curto, sorriso jovial, dois bebés. Teve gémeos há pouco tempo. É Nastaran, a enfermeira da clínica do campo.

Uma das raparigas mais velhas retoma a conversa: "O nosso país é belo. Um dia atingirá a sua beleza."

Nastaran desata a falar: "Belo? Como pode ser belo para alguém cuja filha foi violada? Os meus vizinhos tinham uma filha. Um dia saíram, mujahedines entraram e violaram-na. Houve muitos suicídios de raparigas. O povo afegão não é triste, havia dança, havia música, nós somos alegres. Agora, não só tudo foi destruído, como muitas pessoas têm problemas mentais, estão sempre a sofrer. O sorriso desapareceu das nossas pessoas."

Três outras raparigas relatam casos de vizinhas violadas por mujahedines ou taliban, ou perseguidas ao ponto do massacre, como um irmão que matou a irmã, o taliban que a queria levar, e se suicidou em seguida.

Nastaran continua: "Há famílias que vendem os filhos nas ruas, como legumes e vegetais, em Cabul, em Herat, em Jelalabad, É muito comum, crianças de seis e sete anos. Houve uma mulher que vendeu o filho e dois dias depois não aguentou e matou-se."

A luz vai abaixo. Vêm dois candeeiros a petróleo.

Sem deixar de amamentar um dos bebés, a jovem enfermeira conta ainda: "Há professores universitários que andam a pedir nas ruas. Algumas professoras prostituem-se."

As raparigas estão a pôr a mesa, para jantarmos: uma tela, no chão. Arroz, e, como há uma visita, um bocadinho de carne, iogurte e fruta. Vamos à cozinha, que, como todas as divisões, dá para o pátio: dois fogões pequenos a gás, paredes com buracos, chão de terra. Cá fora está um bidon com água, roupa estendida, o forno do pão. O pão é uma massa achatada, sem sal, sem sabor.

O céu está cheio de estrelas, a meia lua subiu, as crianças fazem muitas perguntas.

Depedimo-nos, até amanhã.

Preparam-nos uma cama na melhor casa do campo. Paredes de palhinha, vidros nas janelas. Com um colchão no chão, para uma das professoras da escola: "No Afeganistão, se um convidado está sozinho em nossa casa, alguém dorme sempre ao seu lado. Para proteger. É a nossa tradição."

Ao romper do dia

Seis da manhã. Já está calor. Saímos para o pátio. Há flores rosa e amarelas. Roupa estendida. A dona da casa vem perguntar-nos o que queremos comer. Leite? Vamos com ela, ao leite. Saímos para a praça, outro pátio. Há mulheres a cozerem os pães achatados. Um velho de longas barbas tem um bebé ao colo: estão deitadas numa enxerga ao ar livre, chão de terra batida. Esta família tem uma vaca, trazemos leite.

Com mais ovos (excelentes) das galinhas da dona da casa, tomamos o pequeno-almoço.

Voltamos a sair. Na praça, há cabras e, afundados numa lama que é onde vão ter as águas das lavagens (os regos correm ao meio das ruas), vários patos. Três meninos nus brincam no pó. A cabeça muito grande, a barriga muito inchada.

Lá ao fundo começam a ver-se uns pontinhos azuis e brancos: são as meninas da escola. Ao todo, 400, entre os vários milhares que existem no campo. Aproximamo-nos e vamos no meio da nuvem. Algumas, trazem os cadernos em sacos de plástico, e o uniforme cheio de pó. Mas têm ganchinhos no cabelo. Correm abraçadas, minúsculas, as da primeira classe. Passam a correr e gritam: "Salam! Salam!"

Uma adolescente vem dizer bom dia em inglês. Chama-se Naheed, tem 13 anos, está toda vestida de cor-de-rosa. O lenço esvoaça sobre o pó: "Falo inglês porque o meu pai era engenheiro e a minha mãe ensinava inglês na faculdade. Estão em Herat [Oeste do Afeganistão]. Eu vim com o meu tio para poder ir à escola. Lá não é bom para mim. Aprendi a ler em casa." Tropeça um bocadinho nas palavras, mas quer perguntar muitas coisas: "O que é que a América vai fazer?", "O que é que vai acontecer aos taliban?"

Acompanha-nos à escola: dez aulas completamente cheias. Vistas do pátio, as meninas são pequenos vultos azuis metidos em buracos. A última classe, a 10ª só tem seis alunas. Quase adultas.

São oito da manhã. Voltamos à praça. Um homem constrói uma casa: tijolo sobre tijolo. Muitas crianças brincam no pó. Nuas.

A clínica

O Dr. Qauym é o médico de 12 mil pessoas. Vem de assistir a uma morte de um homem: "Cancro. Muito comum nos trabalhadores da fábrica de tijolo. Um inferno de calor e de esforço muscular. Graves problemas respiratórios." Não usa bata, este médico. As salas da sua clínica têm buracos nas paredes e cadeiras de plástico. Chão de terra batida. Ele destapa dois microscópios, e conta o que lhe falta: "Não temos quase nada: máquina de esterilizar, ultra-sons para as grávidas, tanta coisa..."

As infecções respiratórias são o problema mais grave do campo, conta o Dr. Qauyem. Seguem-se: disenteria, malária, doenças de pele, anemia, problemas de ossos, e desordens psicológicas graves (esquizofrenia, depressão, histeria). "Muitos, muitos casos".

Depois há o problema dos partos: "No Afeganistão, nas zonas mais pobres, normalmente as mulheres não chamavam um médico. Se a criança tem algum problema, morre. Em 50 partos, morrem 10 crianças. Uma parte das vezes, morre a mãe, também.

E "pelo menos 50 crianças sofrem de mal-nutrição".

Talvez mais, segundo as que vimos.

Viver com um tapete

A casa que visitamos a seguir é só uma sala. A família tem 12 pessoas. Acabaram de chegar do Afeganistão. Fugiram com a roupa que têm no corpo. Em toda a sala, há apenas um tear, ao centro, onde as três mulheres adultas trabalham ao mesmo tempo, numa velocidade vertiginosa, com os dedos e uma faca enrolada como uma cornucópia: mulher do homem, cunhada do homem (o marido desapareceu) e irmã do homem. Mais o velho pai, mais um bando de crianças. Falam uzbeque. São do norte. É a irmã do homem que conta:

"Uns dias antes dos ataques à América, os taliban levaram duas mil mulheres das aldeias, muito bonitas. As pessoas ficaram com medo. Depois soubemos dos ataques na rua, as pessoas falavam. Os taliban vieram dizer que nos tínhamos de preparar para lutar. E fugimos, sem nada. Andámos durante um dia e uma noite até encontramos um transporte."

O homem conta que os taliban lhes pediam dinheiro sempre que queriam sair da cidade, e o roubavam: "Tiravam os sapatos, os relógios. Tínhamos que pagar 1000 rupias [17,5 euros]." Estamos sempre com medo. Ela [aponta a filha, de 11 anos, acocorada ao pé do tapete] já não pode sair à rua."

Mais à frente, noutra casa, encontramos uma das mulheres que víramos na escola. Tem quatro filhos. Está grávida. Diz a sorrir, como quem diz um bem: "Estou a rezar para que o meu filho morra." O filho mais velho tem nove anos e é incrivelmente bonito, com a pele muito morena, e uns olhos como clarões ao centro do rosto. Está de pé, junto à janela, a escrever. "É sempre o melhor da classe", diz a sorrir, da mesma maneira.

É hora de almoço. Há mulheres a lavar roupa nos pátios. Pelas ruas, mais cabras. Quem não tem de estar ao sol, não está. Despedimo-nos. Vamos pelas traseiras do campos. Dezenas de tendas sob um sol escaldante. Recém-chegados. Alguns, têm duas cabras dentro da tenda e estão cá fora, ao sol, ao pó. Mais à frente, a gigantesca fábrica de tijolo. Cavalos e homens como vultos medievais. Puxando carregamentos de tijolos, moldando tijolos à torreira do sol alto.

Até Peshawar são 45 quilómetros. Há quem nunca tenha saído destas muralhas.



De: http://jornal.publico.pt/publico/2001/09/28/Destaque/X01.html






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